Bernardo de Quadros Bruno
5 min readFeb 20, 2024

De Spielberg a Paulinho da Viola: a arte como mediadora do mundo do artista

Não tirei minha viola

Parei, olhei, fui-me embora

Ninguém compreenderia um samba naquela hora

Cantando à sua musa, um sambista passeia pelas ruas com a viola na mão (onde gravou o nome de sua nega) e se depara com o mundo e suas coisas: um azarado que lhe fala de doença, amor e dinheiro, um bêbado estirado na calçada que esqueceu do compromisso que assumiu com a mulher e um corpo de um morto assassinado por conta de um pandeiro. O eu lírico de Coisas do Mundo, Minha Nega, samba obra-prima de Paulinho da Viola, parte em uma odisseia boêmia onde vai se esbarrando com essas aventuras e personagens para depois retornar à sua nega e relatar o universo como samba, a quem dedica as “mesmas palavras” e o “mesmo remorso”.

Assim como Paulinho, poeta portelense que precisa da viola e do pandeiro, ao invés da caneta e papel, para se comunicar e se firmar com o cosmos, nosso protagonista sambista se utiliza da música para se conhecer e entender o mundo. Coisas do Mundo, Minha Nega estabelece a arte como mediadora fundamental na vida do artista. Do amor à morte, de um simples diálogo com um bêbado a uma declaração para sua musa, o samba se estabelece como ferramenta exclusiva de comunicação e forma de conhecer o mundo para o eu lírico da canção (“as coisas estão no mundo só que eu preciso aprender”). Ao se deparar com o azarado Zé Fuleiro questionando se o sambista teria algum dinheiro que pudesse dar, ele oferece tudo o que há de mais valoroso e sincero:

Perguntou se não dispunha de algum que pudesse dar

Puxei então da viola

Cantei um samba pra ele

Foi um samba sincopado

Que zombou de seu azar

Pode parecer irônico ou até cruel tocar um samba sincopado zombando do azar do outro, mas, em minha interpretação, é a maneira mais honesta que ele teria como lidar com a dor do outro ali — característica muito própria do samba de cantar, beber e zombar (!) para espantar a dor. Até porque quando o eu lírico encontra um homem morto, por conta de uma briga envolvendo não o amor ou dinheiro, mas um pandeiro, ele não tira a viola e toca um samba. Apenas para, olha em volta e vai-se embora: “ninguém compreenderia um samba naquela hora”. A arte é tão central, tão intrínseca à sua maneira de ver, pensar e lidar com o universo, que lhe parece a única opção possível no momento. No entanto, como ninguém entenderia, o sambista se censura e vai embora. Seria a composição célebre do portelense autobiográfica? Um reflexo da própria maneira de Paulinho da Viola em lidar com o mundo sempre amparado por sua viola e poesia?

Encarte do vinil de Memórias Cantando (1976) , disco de Paulinho com minha versão preferida de Coisas do Mundo, Minha Nega

Real ou não, a figura do sambista de Coisas do Mundo, Minha Nega me lembra um personagem ficcional, porém declaradamente autobiográfico: Sammy Fabelman. Foi através do personagem que o cineasta Steven Spielberg conseguiu falar da sua própria vida através da autoficção cinematográfica de 2022, Os Fabelmans. Assim como Paulinho da Viola e o eu lírico sambista da canção, Spielberg só conseguiria falar de assuntos como o divórcio de seus pais e suas frustrações na adolescência por meio de sua viola: o cinema. Se Paulinho vai entendendo seu lugar no mundo pelo canto e pelo pandeiro, Spielberg está sempre acompanhado de sua câmera: objeto que media e constrói sua própria vida como filme (literalmente). É com o cinema que ele consegue uma namorada, faz amizades, zomba os valentões do colégio, etc.

Cena em que Sammy imagina a filmagem do divórcio dos pais

Em um dos momentos mais impactantes de Os Fabelmans, o protagonista Sammy tem que encarar a crise no casamento de seus pais e a depressão de sua mãe (também artista). Uma de suas soluções? Fazer um filme sobre a viagem de acampamento com sua família. Através do fazer fílmico, Sammy/Spielberg tenta evitar a inevitável separação de seus pais: é a única maneira que ele tem para lidar com a situação (seria Fabelmans também a sua maneira de lidar com isso hoje ainda aos 80?).

Contraditoriamente, é por meio do filme produzido pelo garoto que ele descobre que sua mãe tem uma relação com um amigo de seu pai. Ao invés de simplesmente conversar com sua mãe, Sammy projeta o filme para que ela veja com os próprios olhos seu documentário autoral sobre a infidelidade da mãe. É o único jeito que ele conhece para se expressar.

Em outra cena, enquanto seus pais anunciam o fim do casamento para os filhos, o alterego ficcional de Spielberg não consegue lidar com seus sentimentos ou chorar pelo divórcio dos pais, grande trauma de sua juventude. A única coisa que passa por sua mente é a melhor maneira de se enquadrar e fazer o blocking dos pais brigando nessa grande performance cinematográfica. O diretor nos coloca no ponto de vista de Sammy em 8mm e somos transportados para a cabeça do artista que precisa filmar a dor de sua família de maneira distanciada para conseguir, então, lidar com os acontecimentos da própria vida.

Se muitos achavam que o filme de Spielberg seria uma homenagem ao cinema, uma love letter aos filmes que formaram esse grande cineasta de Hollywood, Os Fabelmans de certa forma mostra a maldição que é ser artista. Como um fardo, é quase como se o jovem cineasta fosse para sempre condenado a fazer filmes e pensar o mundo enquanto cinema e isso o distancia de todo o resto. Em outra cena marcante, o tio de Sammy encoraja o menino a fazer seus filmes e se expressar para o mundo, mas também o alerta, comparando a figura do artista com a de um viciado em drogas: “Art will give you crowns in heaven and laurels on Earth, but also, it will tear your heart out and leave you lonely”.

A arte é um fardo na vida do artista, mas é também sua grande possibilidade de libertação e inserção no mundo, por mais que em alguns momentos ninguém entendam o samba/ filme naquela hora.