“Como Ver Um Filme” de Ana Maria Bahiana (2012) — Crítica

Bernardo de Quadros Bruno
4 min readSep 14, 2020

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Em 1965, o teórico, cineasta e crítico francês Jean Mitry afirmou: “O romance é uma narrativa que se apresenta em mundo, o filme um mundo que se apresenta em narrativa.” Cada vez que apagamos as luzes, nos sentamos e nos deparamos com um filme, adentramos em um universo completamente diferente do nosso que pode (ou não) nos hipnotizar completamente e nos sequestrar do atual mundo em que vivemos. A intenção da jornalista e escritora brasileira, Ana Maria Bahiana no livro Como Ver Um Filme de 2012 é justamente nos guiar nessa experiência onírica e até transcendental (segundo a própria autora carioca: “o cinema é arte mais próxima do sonho”) que é o contato com a sétima arte.

Ao longo de 181 páginas do livro, o que mais me impressionou positivamente foram as intenções democratizadoras e pragmáticas da jornalista com a obra, como se fosse verdadeiramente um guia de iniciação para os amantes de cinema. Claramente ela está interessada em deselitizar a arte e popularizar o conhecimento através do emprego de linguagem clara, vários exemplos de filmes tanto mais novos quanto mais antigos e teoria num nível mais básico e alcançável. Logo, em uma sociedade tão dividida pelas barreiras academicistas e sociais, acho louvável as intenções de Bahiana.

Meu problema com a obra é uma certa cartilha que a escritora utiliza ao analisar o que seria um filme bom ou filme ruim. Se Mitry estabelece que cada filme é um mundo, logo cada mundo deve ser analisado segundo suas próprias condições, é impossível definir a arte boa ou a arte ruim somente com regras gerais. Se um longa faz tudo que a autora reconhece como desejável e a experiência simplesmente não te engrandece de que serve essa cartilha? Ou se o filme faz tudo “errado” e mesmo assim aquelas duas horas mudam completamente sua experiência com a arte dali em diante? Na minha visão não existe filme bom que você não gostou, acho indissociável qualidade e gosto, afinal é tudo subjetivo e o que conta é nossa experiência.

De acordo com Ana Maria Bahiana, Showgirls de Paul Verhoeven se encaixa completamente nessa categoria como um “filme tão ruim que é bom”, a obra é brega, tem atuações exageradas e falsas, diálogos completamente exacerbados, várias cenas de nudez que beiram o ridículo, etc. E mesmo assim considero um dos maiores filmes já feitos e a obra-prima do diretor holandês. A maneira que Verhoeven consegue se apropriar de tudo que é considerado ruim pelos padrões hollywoodianos e encaixar completamente na cosmologia do filme é simplesmente genial e promove uma das experiências mais únicas que já tive com o meio. O filme simplesmente não teria o mesmo impacto caso tivesse atuações e diálogos realistas, Showgirls ganha vida pelo histrionismo, pelos excessos do ‘showbiz’, pela podridão de tudo aquilo, é libertador o jeito que a obra simplesmente aceita essas qualidades tão indesejadas e acredita nelas até o final.

O meu maior medo com o livro de Ana Maria Bahiana é de limitar experiências tão grandiosas como a que eu tive com o longa de Paul Verhoeven, segundo o crítico e historiador inglês Tag Gallagher: “Os autores são tão diversos quanto os humanos, e os instrumentos que convêm à análise de Ford não são aqueles que convêm para Rossellini. Uma teoria válida para todos os autores é tão inútil quanto uma teoria para todo o “cinema” — cuja definição muda com cada bom filme, se ele é da arte, se ele é humano.” Portanto, cada obra é um mundo e cada mundo tem suas regras, o interessante é ver como cada diretor (criador e destruidor dos mundos) se utiliza da linguagem para concretizar essas ideias e transformá-las em ‘imagem-movimento’ como teorizado por Deleuze.

Já em resposta à provocação do título, não acho que exista maneira certa ou errada de se assistir um filme, na tela do iPhone ou na projeção em IMAX, com uma atitude passiva ou ativa, etc. Se existisse maneira correta o cinema não seria juntamente com a música talvez a arte mais popular reunindo bilhões de pessoas presas às mesmas imagens e histórias. O que pode diferenciar de pessoa a pessoa é um método de análise pós-filme, uma maneira de pensar o filme. Apesar de discordar da autora em diversos pontos (como o adágio citado de que é quase impossível fazer um filme bom com um roteiro ruim mas que o contrário é possível), não penso que o meu método de assistir seja correto e o dela seja errado, são apenas visões de análise diferentes. É óbvio que quanto mais se estuda e se assiste mais complexas são nossas experiências como expectadores, porém nunca mais “corretas”.

Em conclusão, acredito que Como Ver Um Filme cumpre decentemente um propósito de obra introdutória às maravilhas do cinema, no entanto a autora se perde às vezes criando regras que podem atrapalhar um jovem cinéfilo iniciando os estudos em busca da tal experiência ideal que a autora tanto nos quer legitimamente proporcionar. Como Tag Gallagher teorizou muito mais belamente que eu defendendo a ideia de cada filme como um mundo em Narrativa Contra Mundo: “A teoria do cinema, como já se notou, muitas vezes tomou precisamente as direções às quais Bazin e Mitry se opunham — as de uma teoria fundada na narrativa. Em particular entre os meios universitários anglo-americanos, em que versões caricaturais do autorismo são há décadas jogadas no ridículo, em que a experiência permanece exterior ao saber acadêmico, e em que a teoria foi a tal ponto mergulhada na meta-teoria literária e psico-literária que os próprios filmes só têm uma importância mínima (se é que eles têm alguma), a não ser como referência à teoria”.

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