Loona — Love Cherry Motion, Cidade dos Sonhos e K-pop

Bernardo de Quadros Bruno
5 min readApr 19, 2021

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Contém spoilers de Cidade dos Sonhos (2001) de David Lynch

Em 2016, mais uma gravadora sul-coreana decidiu embarcar na onda pós-BTS de sucesso do pop coreano e investiu em um dos conceitos mais originais e ousados da música pop na última década: o “girlgroup” Loona. Formado por 12 meninas, cada integrante sendo anunciada para o público praticamente de mês em mês, o ambicioso projeto foi conquistando fãs mundialmente pela constante antecipação gerada pela essência do projeto. A Blockberry Creative, empresa responsável pela gravação e divulgação das músicas, clipes e álbuns, investiu em uma forte mitologia por trás de cada detalhe dos videoclipes, que lentamente iam criando uma história e um universo envolvente. Isso tudo, claro, com diversos vídeos de bastidores que revelavam o carisma e originalidade das garotas na vida real, fora do “loonaverso” (modo que os fãs se referem ao mundo de Loona). No decorrer disso tudo, cada integrante recebeu seu próprio solo com direito a um videoclipe exclusivo e foram formados 3 subdivisões do grupo, cada um com um conceito tradicional do K-pop: seja um conceito mais fofo (Loona ⅓), um conceito mais “girl-crush”, o famoso femme fatale (Loona Odd Eye Circle), ou até uma junção dos dois conceitos (Loona yyxy).

Com essa pretensão de criar um grupo volátil e abrangente que pudesse agradar a diversas pessoas diferentes, a Blockberry criou um fenômeno, ainda mais considerando a produção de altíssimo nível em praticamente todas as músicas do grupo e uma identidade visual extremamente marcante nos clipes e materiais de divulgação. E em Love Cherry Motion, a música solo da integrante Choerry, tudo isso chega num ápice impressionante. A música se inicia com uma camada de sintetizadores bem bubblegum preenchidos por um baixo slap e melodias alegres que lembram bastante o hit California Gurls da Katy Perry. As letras retratam um inocente início de relacionamento e os conflitos do amor na juventude, a música é um grande estereótipo da música pop inocente: “O dia todo você me fez ter borboletas no estômago/ Então meu coração cresceu bastante/ Meu coração cresceu como uma bolha de chiclete”.

Mas por trás das camadas de sintetizadores e do roxo vibrante do vestido de Choerry, existe um inevitável senso de estranhamento: essas meninas parecem muito felizes, as cores muito vibrantes, os cenários muito vazios. E depois de um refrão, muito envolvente e aparentemente normal, a música (e o vídeo) dá uma reviravolta completa. Choerry come uma cereja, vira de cabeça para baixo e descobre todo um mundo por trás dessa realidade onde tudo parece invertido, mais sujo, maduro e sexual. Entra um baixo 808s, uma batida de trap, um sintetizador distorcido com uma melodia meio dissonante. Por trás das aparências da indústria do K-pop existe sexo, drogas, exploração da força de trabalho até a exaustão, padrões de beleza inalcançáveis e uma forte onda de suicídios e casos de depressão dentro das famosas indústrias de entretenimento coreanas. Isso tudo dentro de uma sociedade extremamente conservadora, fruto da constante intervenção norte-americana na Coréia do Sul, que tenta ao máximo esconder essa realidade por trás de efeitos especiais e canções de amor. O que seria tudo isso se não uma era de ouro hollywoodiana em plena contemporaneidade?

Love Cherry Motion é como Cidade dos Sonhos, filme de 2001 dirigido por David Lynch onde o ideal hollywoodiano não passa de um pesadelo cruel e absurdo onde, assim como os filmes da Hollywood clássica, tudo parece falso, romântico e fabricado para a fruição do espectador. A primeira parte do filme parece se passar num limbo cinematográfico onde os valores da américa de Eisenhower dos anos 50 se misturam com um cinema americano pessimista pós-vietnã: a atriz venerada é Rita Hayworth, a música é uma mistura de rock, blues e jazz, os diretores ainda se comportam como o Cecil B. De Mille e as atrizes ainda pensam ser a Gloria Swanson. Mas as cortinas se abrem, as ilusões se revelam: “No hay banda. There is no band! Il n’est pas de orquestra! This is all… a tape-recording. No hay banda! and yet we hear a band.” E o que seria o cinema se não a imitação perfeita, o falso mais verdadeiro? Como diria Orson Welles: “O que nós, mentirosos profissionais, esperamos servir é a verdade. Receio que a palavra pomposa para isso seja arte.”

No entanto, diferentemente de Lynch, onde após o despertar do pesadelo não existe mais volta para o mundo dos sonhos, a única opção de Diane é o suicídio para escapar dessa realidade que se confunde com a ficção. Em Love Cherry Motion, nossa protagonista acorda, finge que nada aconteceu e volta a viver nesse mundo de falsidades. O mais chocante no vídeo solo de Choerry é a mudança para o normal após o aparente despertar, é impossível voltar ao mundo normal depois de tudo isso. Mundo esse que parece cada vez mais distorcido, colorido e superficial, a protagonista se confronta em estranhas reflexões de si mesma, suas amigas estranhamente desaparecem. O final não poderia ser mais adequado: a protagonista aceita ambos os mundos e vive em um limbo entre realidades, entre o falso e o real. O verde da natureza assume o mesmo roxo de suas roupas por um truque barato de edição, no final das contas é tudo uma gravação, não há banda, não há orquestra.

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