O fechamento do Cine Joia e o impacto da pandemia nos cinemas de rua

Pandemia agrava crise dos cinemas de rua no Rio e acelera processo de abandono dos antigos centros culturais alternativos da cidade

Bernardo de Quadros Bruno
7 min readJan 4, 2022

De Felipe Galeno e Bernardo Bruno

No dia 13 de novembro de 2020, mais um cinema de rua carioca fechou; desta vez, o Cine Joia em Copacabana. A sala encerrou definitivamente suas atividades em decorrência da pandemia do coronavírus e do fim de uma parceria municipal com a RioFilme — que cortou, em abril do ano passado, os repasses mensais de R$ 10.000 que oferecia ao estabelecimento. “A missão estava cumprida. Eu falo muito do Rocky Balboa; ele não ganha do campeão mas dá uns três ou quatro [socos] bem dados no cara e chega a meter um medo. Isso também é uma lição de filme, às vezes você não ganha, mas você chegou perto e já tá bacana” diz Raphael Aguinaga, cineasta e empresário de 48 anos que reformou e administrava a sala desde 2010, no interior da galeria Shopping 680, na Av. Nossa Sra. de Copacabana.

Desde março de 2020, vários cinemas no mundo todo foram forçados a pausar suas atividades por tempo indeterminado, devido à crise global causada pela pandemia da COVID-19. “A sala de cinema é um lugar que possibilita muita contaminação por ser extremamente fechada, com ar condicionado e que tem que evitar a luz”, como explica Wilson Oliveira Filho, pesquisador de cinemas de rua e doutor em Memória Social pela UNIRIO.

No entanto, existe uma grande diferença entre como os grandes exibidores e as salas de rua são afetados por essa crise. “Os custos de operacionalização das salas são enormes: funcionários, contas, obedecer aos constantes avanços tecnológicos. Em geral, cinemas de rua trabalham num regime deficitário de renda”, esclarece a doutora e professora da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, Márcia Bessa. “Se o pequeno exibidor não se contentar com um pequeno lucro, ele vai fechar a sala. E ele consegue o pequeno lucro tendo subsídio público. Pensar em abrir uma sala durante a pandemia para um multiplex, no shopping, é mais fácil de reabrir do que para o Cine Santa lá em Santa Teresa.”

No caso do Cine Joia, apesar de todas as dificuldades financeiras, Aguinaga conseguiu construir uma programação única no circuito carioca — a sala foi eleita pela revista de bordo da Emirates, em 2014, como um dos sete principais cinemas independentes do mundo. Filmes antigos, produções independentes, saraus de poesia, debates e até mesmo apresentações musicais e teatrais eram algumas das atrações recorrentes. A pequena sala, com suas 87 cadeiras coloridas em um visual sessentista, ainda oferecia — além de exibições promocionais gratuitas — sessões com ingressos custando de 5 até 30 reais, dependendo do dia — uma faixa de preço abaixo da média nacional. Bernardo Wendrownik, estudante e cineasta de 16 anos, conta que a programação do Cine Joia “conseguia sopesar filmes que estavam inseridos no circuito com filmes também mais rebuscados, de grandes diretores — mostras do Kubrick, do Bergman — que em raros momentos temos essa oportunidade de serem vistos em uma telona. Exibiu em 2019, o Mangue Bangue do Neville de Almeida, filme raríssimo. Era riquíssimo na sua programação, na sua proposta curatorial que diferia de praticamente tudo que a gente via por aí.”

(As cadeiras coloridas do Cine Joia / Foto: Reprodução)

Além disso, o antigo dono do estabelecimento também tinha um programa de exibições gratuitas para estudantes da rede pública municipal da região. Por oito anos, Raphael arcou, por conta própria, com os custos da recepção de cerca de 15 mil crianças, até 2019, quando firmou uma parceria com a RioFilme, distribuidora criada em 1992 e gerida pela Prefeitura. O projeto CineCarioca Escola acabou sendo institucionalizado e virou política pública em 2019. Durante seis meses, o Rio de Janeiro foi a única cidade da América do Sul a oferecer aulas gratuitas em cinemas, conta o entrevistado. “Parecia que a gente tava na primeiro mundo (…) Foram os seis melhores meses da minha vida.” Ao todo, foram realizadas 30 sessões com alunos da rede municipal e idosos — mais 18 estavam agendadas e não saíram do papel por causa das medidas de isolamento.

No entanto, logo após o melhor ano comercialmente para a sala em 2019, segundo o próprio dono, a pandemia chegou e, com ela, o fim do apoio estatal. A prefeitura, apesar de cortar os pagamentos mensais, continuou patrocinando o Cine Joia. Este contrato municipal, segundo Aguinaga, o impediu de buscar subsídios por outros meios, como, por exemplo, com o Programa Especial de Apoio ao Pequeno Exibidor (PEAPE). Já a prefeitura, a partir de um comunicado da Secretaria Municipal de Cultura, afirma ter proposto uma readequação do projeto que não teria sido aceita pelo exibidor. “A Secretaria Municipal de Cultura, por meio da RioFilme, esclarece que não houve rescisão de apoio ao Projeto CineCarioca Escola — Copacabana, o que houve foi o término de vigência do contrato em 28 de agosto de 2020”, esclarece o comunicado oficial.

Independente dos pontos de vista acerca do fechamento, o fato é que, alguns meses depois, em novembro, o Cine Joia dispensou seus dois funcionários e fechou as portas definitivamente. Para a pesquisadora de cinemas de rua e professora da ESPM, Talitha Ferraz, o fechamento da sala de Copacabana é um descaso público e parte de um processo de apagamento das experiências alternativas. Em um país europeu, exemplifica Ferraz, o Joia seria valorizado e até disputado por investidores dos setores público e privado, por ser uma sala única no Brasil e no mundo: “É um sinal de que a gente, de fato, não vê a cultura como um setor comercial importante.” A pesquisadora acrescenta também que, em 2019, o setor audiovisual ocupou uma parcela de 0,46% do PIB brasileiro, uma porcentagem maior do que a da indústria farmacêutica.

É importante entender que esse problema atingiu não apenas o Cine Joia, mas também os outros cinemas de rua em geral. Em junho de 2021, outro cinema de rua em Copacabana, o Roxy, inaugurado em 1938, chegou a anunciar o encerramento de suas atividades, após sucessivos adiamentos na data de reabertura. No mesmo mês, porém, a prefeitura o incluiu no Cadastro dos Negócios Tradicionais e Notáveis da cidade — o que não proíbe a venda do prédio histórico no qual o cinema se instala, mas impede que novos proprietários mudem o ramo de atividades do imóvel sem o aval do prefeito. Por mais que seu fechamento não tenha sido definitivo, o caso do Roxy é mais um exemplo da posição instável que as salas de rua ocupam em relação à segurança das salas de cinema em shoppings. Com o monopólio das grandes exibidoras nas salas em centros comerciais, o carioca perde o costume de ver a rua como um espaço cultural. Experiências mais únicas e diferenciadas com o cinema se tornam raras, elitizadas e distantes da população. “O cinema [de rua] quando fecha”, explica Bessa, “pode levar outras estruturas de serviços e comércios ao redor dele a fecharem também, a área do entorno pode ficar deserta e mais perigosa. Esses espaços dinamizam a vida sociocultural no contexto urbano.”

Por causa disso, o impacto de espaços como o Joia na vida dos moradores de Copacabana era maior do que o de um comércio qualquer — o dono conhecia a maioria dos frequentadores mais assíduos. Raphael Aguinaga conta que, quando a sala começou a vender os ingressos por lugar marcado, muitos idosos, que frequentavam com constância o Joia, sentiram uma dificuldade nessa adaptação. Esses clientes estavam acostumados a chegar cedo para garantir suas poltronas favoritas. Por conta disso, Raphael e os funcionários começaram a “reservar” os assentos de escolha dos clientes mais velhos, antes mesmo de iniciar a venda de ingressos para o resto do público. “Era muito um cinema de bairro, você sempre via as mesmas cabeças lá”, comenta o estudante de Economia Theo Handofsky, de 20 anos. “Eu era tratado como uma pessoa e não só como um consumidor.”

Foi esse tratamento humano e íntimo que contribuiu para a construção de um ambiente que vai deixar memórias e saudades dos afetos em relação à pequena sala, no subterrâneo de uma galeria. Uma dessas lembranças, por exemplo, perdura com a antropóloga Beatriz Brandão, de 31 anos, que relembra um momento bastante especial no Cine Joia. A antiga frequentadora decidiu ir ao cinema no dia do segundo turno das eleições de 2018, para fugir da tensão da apuração dos votos. O Joia estava exibindo o documentário Frágil Equilíbrio sobre a vida de José Mujica, ex-presidente de esquerda do Uruguai. Beatriz conta que várias pessoas fizeram o mesmo e foram para o cinema, fugir do clima pesado: “pela primeira vez, também num cinema, tava todo mundo com o mesmo objetivo ao ver aquele filme e aquela mesma áurea, sabe, de ansiedade, de medo, de ‘Meu Deus, o que que vai ser daqui?’”

Beatriz e os outros frequentadores acabaram sabendo do resultado das eleições dentro do próprio cinema e um clima de luto coletivo se instaurou na pequena sala do Cine Joia. “Era como se todo mundo ali tivesse num enterro, sabe, como se todo mundo fosse uma família que tivesse recebido a notícia da morte de alguém. E a gente começou a conversar, se abraçar, dar uma palavra de consolo uns para os outros e lembrar das coisas que a gente tinha escutado no documentário com o Mujica.” Essas eram as experiências que o Cine Joia proporcionava e que, provavelmente, nenhum outro cinema carioca conseguia proporcionar da mesma maneira.

Com o fim do cinema, o sócio e fundador do Joia voltou seu foco para a carreira de cineasta e, durante a pandemia, tem trabalhado em um documentário sobre a história e o trajeto do Cine Joia. Sua intenção é mostrar que seus mais de 10 anos de luta por um espaço cultural democrático, acessível e variado não foi em vão, e que é possível fazer outras salas parecidas no Rio de Janeiro e no Brasil. Para Raphael, sua experiência com a sala foi uma oportunidade de “exercitar uma alegre arrogância contra as impossibilidades” e lutar por “espaços que sejam um recorte no tempo-espaço da lógica da sociedade atual”. “Às vezes eu penso que eu fiz uma instalação de 10 anos de duração e que eu quase morri por causa disso, mas vai dar um filme bem legal”, brinca Raphael.

Reportagem realizada para a disciplina Reportagem I da Prof. Mariana Filgueiras da ECO-UFRJ pelos alunos Felipe Galeno e Bernardo Bruno da UFRJ.

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